domingo, 30 de maio de 2010

Cotas: o justo e o injusto

“A ideia das cotas reforça conceitos nefastos:
o de que negros são menos capazes e presisam
de um empurrão e o de que a escola pública é
péssima e não tem salvação”

O medo do diferente causa conflito por toda parte, em circunstâncias as mais variadas. Alguns são embates espantosos, outros são mal-entendidos sutis, mas em tudo existe sofrimento, maldade explícita ou silenciosa perfídia, mágoa, frustração e injustiça. Cresci numa cidadezinha onde as pessoas (as famílias, sobretudo) se dividiam entre católicos e protestantes. Muita dor nasceu disso. Casamentos foram proibidos, convívios prejudicados, vidas podadas. Hoje, essa diferença nem entra em cogitação quando se formam pares amorosos ou círculos de amigos. Mas, como o mundo anda em círculos ou elipses, neste momento, neste nosso país, muito se fala em uma questão que estimula tristemente a diferença racial e social: as cotas de ingresso em universidades para estudantes negros e/ ou saídos de escolas publicas. O tema libera muita verborragia populista e burra, produz frustração e hostilidade. Instiga o preconceito racial e social. Todas as “bondades” dirigidas aos integrantes de alguma minoria seja de gênero, raça ou condição social, realçam o fato de que eles estão em desvantagem, precisam desse destaque especial porque, devido a algum fator que pode ser de raça, gênero, escolaridade ou outros, não estão no desejado patamar de autonomia e valorização. Que pena.
Nas universidades inicia-se a batalha pelas cotas. Alunos que se saíram bem no vestibular – só quem já teve filhos e netos nessa situação conhece o sacrifício, a disciplina, o estudo e os gastos implicados nisso – são rejeitados em troca de quem se saiu menos bem, mas é de origem africana ou vem de escola pública. E outros? Os pobres brancos, os remediados de origem portuguesa, italiana, polonesa, alemã, ou o que for cujos pais lutaram duramente para lhes dar casa, saúde, educação?
A ideia das cotas reforça dois conceitos nefastos: o de que negros são menos capazes, e por isso precisam desse empurrão,e o de que a escola pública é péssima e não tem salvação. É uma ideia esquisita, mal pensada e mal executada. Teremos agora famílias brancas e pobres para as quais perderá o sentido lutar para que seus filhos tenham boa escolaridade e consigam entrar numa universidade, porque o lugar deles será concedido a outro. Mais uma vez, relega-se o estudo a qualquer coisa de menor importância.
Lembro-me da fase, há talvez vinte anos ou mais, em que filhos de agricultores que quisessem entrar nas faculdades de agronomia (e veterinária?) ali chegavam através de cotas, pela chamada “lei do boi”. Constatou-se, porém, que verdadeiros filhos de agricultores eram em número reduzido. Os beneficiados eram em geral filhos de pais ricos, donos de algum sítio próximo, que com esse recurso acabaram ocupando o lugar de alunos que mereciam, pelo esforço, aplicação, estudo e nota, aquela oportunidade. Muita injustiça assim se cometeu, até que os pais, entrando na Justiça, conseguiram por liminares que seus filhos recebessem o lugar que lhes era devido por direito. Finalmente a lei do boi foi para o brejo. Nem todos os envolvidos nessa nova lei discriminatória e injusta são responsáveis por esse desmando. Os alunos beneficiados têm todo o direito de reivindicar uma possibilidade que se lhes oferece. Mas o triste é serem massa de manobra para um populismo interesseiro, vítimas de desinformação e de um visão estreita, que os deixa em má posição. Não entram na universidade por mérito pessoal e pelo apoio da família, mas pelo que o governo, melancolicamente, considera deficiência: a raça ou a escola de onde vieram – esta, aliás, oferecia pelo próprio governo. Lamento essa trapalhada que prejudica a todos: os que são oficialmente considerados menos capacitados, e por isso recebem o pirulito do favorecimento, e os que ficam chupando o dedo da frustração, não importando os anos de estudo, a batalha dos pais e seu mérito pessoal. Meus pêsames, mais uma vez, à educação brasileira.

Ponto de vista: Lya Luft

quinta-feira, 6 de maio de 2010

As cotas e as cotas nas universidades públicas

A educação no país continua navegando em modismos e conveniências. A bola da vez é o projeto de cotas sociais. Prevê uma reserva de 50% das vagas nas universidades federais para os estudantes que cursarem o ensino médio em escolas públicas. Principal argumento: enfrentam o vestibular com desvantagem em relação aos egressos das escolas particulares e àqueles que fazem escala nos cursinhos da vida. Há, nisso, verdades e falsas interpretações que valorizam o acidental em detrimento do essencial. As verdades são muitas e incontestáveis. Os recentes dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) falam bem alto. No que tange, por exemplo, ao ensino fundamental, registrou-se em 2000 um total de 3,8 milhões de alunos reprovados contra 4,1 milhões em 2002. Sem contar com a queda no número de matriculados e com o fato de que um terço dos ingressos não consegue concluir essa etapa. No ensino médio, a situação não é diferente. As reprovações aumentaram de 649 mil, em 2001, para 747 mil, em 2002. Sem contar com o aumento do número de abandonos (de 1,073 milhão para 1,135 milhão) e com o fato de que menos de 41% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos estão na escola. A estes, outros dados podem ser acrescidos. A educação formal continua perdendo qualidade. É pouca a permanência da criança na escola. Persistem deficiências na preparação e atualização dos professores. Os docentes continuam sendo desvalorizados, com salários aviltantes que os obrigam a trabalhar nos três turnos para levar uma vida minimamente decente. Tudo isso sem considerar outros tantos fatores econômicos e sociais que dão mais contundência a essas verdades. Mas elas não acabam por aqui. É preciso arrolar as mazelas das universidades federais. Há muito estão tocando suas atividades de forma precária. Grande parte dos professores tem contrato temporário, renovado ou não a cada semestre, fato que gera insegurança e compromete a continuidade do trabalho. Os docentes de carreira são poucos e vivem sobrecarregados de tarefas burocráticas, o que compromete a qualidade de outras atividades. As salas de aula estão sempre lotadas. O atendimento administrativo está entregue às baratas. Não há funcionários. Eventualmente estagiários explorados assumindo responsabilidades que não lhes cabem. Essas e outras tantas dificuldades traçam um retrato parcial das agruras enfrentadas pelo ensino superior público no país. Para tantas verdades, as interpretações caminham em direção oposta. Diz-se que é preciso democratizar o acesso às universidades públicas, mas se tenta apagar uma série de questões. É elementar, por exemplo, que, se a maioria dos alunos entra na disputa por uma vaga em desvantagem de conhecimento e preparo, as cotas vão forçar o nível de exigência do vestibular, que já não está a contento, para baixo. Parece elementar, também, compreender que o eixo do problema é estrutural e situa-se no ensino fundamental e médio. Por outro lado, não será exagero vislumbrar a possibilidade de uma surpreendente migração de alunos das escolas privadas, para as públicas, a fim de aumentarem suas chances. Isso geraria sérias dificuldades operacionais para o sistema e permitiria que aqueles com menores condições continuassem alijados da disputa. Pelo que se pode ver, as interpretações indicam sempre o rumo do improviso, não da solução. Esse quadro de verdades e falsas interpretações exige decisões políticas corajosas que separem o essencial do acidental e evitem apenas empurrar o problema com a barriga. Adotar o sistema de cotas é reconhecer que o ensino público fundamental e médio está precário. Essencial, neste caso, seria implementar programas que, em médio e longo prazo, representassem uma decisiva revolução de qualidade em tais níveis, o que passa necessariamente por uma continuada qualificação e valorização salarial dos professores. Adotar as cotas é reconhecer que a maioria dos alunos egressos do ensino médio tem dificuldades para atender as exigências dos concursos vestibulares. Essencial, neste caso, seria organizar projetos emergenciais que oferecessem aos candidatos da rede pública condição de competitividade, evitando-se a reserva de vagas em detrimento da qualidade. Adotar o sistema de cotas é reconhecer a redução da oferta de vagas no ensino superior público. Essencial, neste caso, seria investir na sua expansão, considerando, por exemplo, a proposta dos dirigentes das federais de ampliar as vagas de 530 mil para 1,1 milhão, aí contemplados os cursos noturnos, o que passa, necessariamente, pela abertura de concursos públicos para docentes e servidores administrativos. A despeito do que aqui se evidencia, parece que os homens públicos deste país continuam preocupados não apenas com as cotas, mas, sobretudo, com as contas. Afinal, eleição é o que não falta.

(Odenildo Sena)

Artigo retirado do Portal Amazônia (http://portalamazonia.globo.com/pscript/artigos/artigo.php?idArtigo=33)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Por Que o Negro é Preto

Por que o negro tem a sola dos pés e a palma das mãos inteiramente brancas? É uma pergunta para iniciar uma historia de quando Cristo andou na Paraíba. Mestre Alípio, vaqueiro conceituado, administrador do Engenho Itaipu, foi logo dizendo o que sabia a respeito. Não se fez de rogado. E contou que era voz corrente, disso sabendo disso sabendo desde menino, que Jesus, "ao aparecer por aqui", costumava passear por todos os recantos numa como visita da inspeção.
Avistando-o a distância a mulher de um camponês ficou envergonhada de ser muito moça e já possuir 16 filhos e, então, meteu alguns deles escondidos num quarto. Esperou que chegasse a vez de ser interrogada, o que não tardou. Jesus, aproximou-se, perguntou-lhe se aqueles meninos que estavam no terreiro eram seus filhos, obtendo resposta afirmativa; e indagou ainda se estava satisfeita com a instalação, passadio e condições de vida. A casa lhe parecia bem grande, até confortável. E de repente se mostrou com a curiosidade de saber o que havia no tal quarto onde as crianças se achavam ocultas. Respondeu a jovem mãe, um tanto embaraçada:
- É um depósito de carvão.
Despedindo-se e abençoando a todos, Jesus teve estas palavras sentenciosas:
- Sendo carvão não mudará a cor.
Depois a mulher foi soltar o resto de sua ninhada e ficou surpreendida em ver que os filhos estavam pretos. Por causa de uma mentira se tornara mãe de oito filhos negros. Seu desgosto não podia ser senão enorme. Que fazer, então? Revoltada consigo mesma, não escondia a sua tristeza, até que um dos apóstolos de Jesus, o santo Pedro, recomendara, cheio de confiança:
- Leve os meninos ao Jordão e faça-os banhar nas suas águas que eles ficarão brancos.
Porém quando a camponesa chegou com a metade de seus filhos às margens do rio sagrado, inexplicavelmente este se achava quase seco, com um fiozinho de nada correndo, mal chegando para que as crianças pudessem molhar a sola dos pés e a palma das mãos. E como estivessem com sede, beberam gotas apenas para enganar o desejo, resultando de tudo isso ficarem brancas aquelas partes do corpo, inclusive a boca.
- A boca, Alípio? - interrogamos.
- Sim senhor - respondeu ele. E acrescentou:
- A água foi pouquinha, dando apenas para clarear, puxando mais para roxo.
É a explicação que se conhece com o fim de decifrar o mistério. Os escravos da Várzea costumavam contar essa historia nas suas reuniões domésticas das senzalas e também da Casa-Grande, não deixando de fazer as suas "variações de largo fôlego", entrando detalhes interessantes, enxertos de improvisação, traços de vivo pitoresco, mas o essencial está no que ficou relatado em conformidade com a tradição. E sem tirar e nem pôr.

(Ademar Vidal)